quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Emerson Merhy em três nascimentos. Entrevista por: Demétrio Rocha Pereira e Dayane Caetano

Entrevista por: Demétrio Rocha Pereira e Dayane Caetano

Segundo piso de um barco que ronrona pelo rio Negro, rumo Manaus. Dois gravadores sobre uma mesa improvisada. De costas para um varal de redes que se esgrimam ao vento, Emerson Elias Merhy desfia uma narrativa de si. “Nasci em 1948, renasci em 1968 e vou nascer de novo nos anos 1990.”
Segunda vez foi aos 19 anos, quando ele entrou na Universidade de São Paulo (USP) sob inspirações familiares de virar médico e, como médico, compor uma elite profissional atinente à sua formação escolar. Mas em 68 fervia a luta contra a ditadura e os acordos MEC-USAID, que vinham sujeitar a educação brasileira a padrões estadunidenses. Um arquétipo de doutor bem-sucedido vai sendo abortado em favor de um parto carimbado pela militância.
Já no primeiro ano de Medicina, Merhy se torna membro do Centro Acadêmico e participa dos movimentos grevistas na USP. Nesse trânsito pela faculdade, ele conhece a professora Maria Cecília Ferro Donnangelo, uma das cientistas sociais mais influentes para a saúde coletiva no país. Em parceria com Cecilia, a turma de Merhy, que um ano antes sofrera trotes “violentíssimos”, organiza uma ida até o Vale do Ribeira, onde 110 calouros realizam uma pesquisa sobre a nutrição das crianças da região rural mais pobre do estado.
“Ali eu aprendo que aquilo que eu imaginava que era uma doença, um corpo que não funcionava direito, na realidade era um fenômeno social.” Ali nasce “um homem de esquerda - não de um partido de esquerda, mas aquele que põe a sua vida na ideia de que todas as vidas valem a pena e na defesa da diferença, mas não da desigualdade.”
Um homem de esquerda se definia também pelo engajamento em grupos clandestinos. Merhy se une à Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella, mas desconfia da luta armada como ferramenta política ao se fazer professor, em aulas de Biologia na periferia de São Paulo, e participante das lutas de operários e das mulheres contra a carestia. O curso de Medicina vai a segundo plano.
“Eu detestava a escola médica. Fui inventando uma escola médica para mim. Fazia o básico para passar nas matérias que eu não gostava. Não tinha dificuldades em passar. Faltava o máximo que podia naquelas aulas chatas e só saboreava o que eu gostava.”
No final do curso, Merhy chega a saborear a psiquiatria, mas se descobre incompatível com a especialização dentro do manicômio, optando em seguida pela residência em Medicina Preventiva e Social e uma especialização em saúde pública. Um concurso lhe devolve, agora como médico sanitarista, para a periferia paulistana, e a reforma sanitária passa a ser rascunhada ao lado de colegas como David Capistrano, Eduardo Jorge e José Rubens, com quem Merhy funda a revista Saúde em Debate e o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES). Em seis meses, a Saúde em Debate conquista 5 mil apoiadores. “Nós não sabíamos que existia isso no Brasil. A revista funcionou como dispositivo de potencialização. Isso vai ser um elemento vital, vai desenhando minha vida todinha nesse processo.”
No mestrado, a orientação de Cecília, que morre em um acidente em janeiro de 1983, não alcança a defesa da dissertação. “Vou defender em novembro, numa situação muito difícil para todos nós, alunos e amigos dela”. A orientação de Cecília se estende, no entanto, por toda esta segunda vida de Merhy, que se muda para Campinas, convidado a reformular o curso de Medicina da PUC ao lado de interventores progressistas, alinhados à Teologia da Libertação: o internato passa a ser na rede municipal, e a prática clínica será aprendida nos postos de saúde, cujas equipes serão formadas por moradores do bairro. “Os alunos iam do primeiro ao quinto ano sempre trabalhando nas redes de serviço. Clínica do Cuidado dentro dos postos, dentro das casas, equipe multiprofissional no levantamento epidemiológico dos grupos vulneráveis… Íamos inventando, inspirados pela experiência da rede básica. Íamos inventando um SUS.”

O barco se agita no andar de baixo. Manaus é próxima e já se avista, e nossos companheiros de viagem negociam uma última praia, para uns últimos mergulhos antes de nos despedirmos do Negro. É por essas alturas do rio que Merhy assume a direção da rede pública da região de Campinas. Com Luiz Carlos de Oliveira Cecílio e Gastão Wagner, ele funda um coletivo na Unicamp que amplia a reforma das práticas de cuidado e a militância junto aos movimentos populares e sindical. Fundado o Partido dos Trabalhadores (PT), surge a possibilidade de experimentações em busca da democratização e do controle social dos serviços ao longo dos anos 1980.
Um mutirão nacional em defesa da saúde pública garante avanços no chegar da Constituinte, mas Merhy se frustra com a “resiliência conservadora” das universidades e, na década de seu terceiro nascimento, ele se envolverá diretamente com as experiências de governos populares em cidades como Porto Alegre, Campinas, São Paulo, Belo Horizonte, Ipatinga e Santos.
Estamos por atracar numa margem deserta enquanto Merhy narra a sua terceira vida, mergulhado no cotidiano dos trabalhadores de saúde: “Cumpro o mínimo exigido na universidade, e todo o tempo que me sobra eu vou para essas experiências, onde sou presenteado pelos trabalhadores, que eram criativos, fabricavam coisas sem pedir licença para ninguém. Serei tão afetado por eles que vou escrever muito sobre a ideia de que o trabalho cotidiano é uma micropolítica, e que os trabalhadores são patrimônio de trabalho vivo, em ato. Inventores sistemáticos do cotidiano. Vou fazer uma inversão completa da minha concepção do trabalho em saúde, que deixa de ser definida pela lógica do capital e passa a ser um lugar de micropolítica, de disputa cotidiana, de éticas, de potências.”

A ideia do cuidado como acontecimento reata Merhy ao problema da formação. Ele participa da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem), que, apesar de “não ir pra frente”, engatilha a criação de núcleos acadêmicos de micropolítica do trabalho e cuidado em saúde e aproxima Merhy da Rede Unida.
Nesta terceira vida, de homem-rede, expressão de nascimentos vários, Merhy ata nós que pedem conexão. Ele se verte ouvido - e escuta: diferentes saberes, caixas de ferramentas, regimes de verdade, sinais que vêm da rua. Vidas que valem a pena. “E eu me sinto muito bem porque toda a produção teórica que a gente tem feito, e toda a nossa prática na vida militante, persegue a ideia de que cada um é uma multidão em rede.” Barco parado, som de gente na água, últimos mergulhos em dois gravadores: “Eu sou uma multidão em rede. Cada um de vocês é uma multidão em rede. E nós estamos sempre em produção.”

Emerson Merhy em três nascimentos

FONTE:
http://www.redegovernocolaborativo.org.br/noticias/emerson-merhy-em-tres-nascimentos

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